Direito originário
Em
que consiste o direito originário dos povos indígenas às terras que ocupam?
Ainda no século XVII, a Coroa Portuguesa
havia editado diplomas legais que visavam coadunar o processo de colonização
com o resguardo de direitos territoriais dos povos indígenas, a exemplo do
Alvará Régio de 1680, primeiro reconhecimento, pelo ordenamento jurídico do
Estado português, da autonomia desses povos, seguido da Lei de 06 de junho de
1755, editada pelo Marquês de Pombal. Juntos, esses diplomas reconheceram o
caráter originário e imprescritível dos direitos dos indígenas sobre suas
terras, compondo o que o Direito Brasileiro dos séculos XIX e XX chamou de
instituto do indigenato, base dos direitos territoriais indígenas
posteriormente consagrados no art. 231 da Constituição da República Federativa
do Brasil de 1988 (CRFB). O Alvará Régio de 1º de abril de 1680 assim
consignava:
[...]
E para que os ditos Gentios, que assim decerem, e os mais, que há de presente,
melhor se conservem nas Aldeias: hey por bem que senhores de suas fazendas,
como o são no Sertão, sem lhe poderem ser tomadas, nem sobre ellas se lhe fazer
moléstia. E o Governador com parecer dos ditos Religiosos assinará aos que
descerem do Sertão, lugares convenientes para neles lavrarem, e cultivarem, e
não poderão ser mudados dos ditos lugares contra sua vontade, nem serão
obrigados a pagar foro, ou tributo algum das ditas terras, que ainda estejão
dados em Sesmarias e pessoas particulares, porque na concessão destas se
reserva sempre o prejuízo de terceiro, e muito mais se entende, e quero que se
entenda ser reservado o prejuízo, e direito os Índios, primários e naturais
senhores delas.
Tal direito – congênito e originário – dos
indígenas sobre suas terras, independente de titulação ou reconhecimento
formal, consagrado ainda no início do processo de colonização, foi mantido no
sistema legal brasileiro, por meio da Lei de Terras de 1850 (Lei 601 de 1850),
do Decreto 1318, de 30 de janeiro de 1854 (que regulamentou a Lei de Terras),
da Lei nº 6.001/73, das Constituições de 1934, 1937 e 1946 e da Emenda de 1969.
Todavia, até os anos 1970, a demarcação das
terras indígenas, amparada na Lei 6001/73 (Estatuto do Índio) pautava-se pelo
modelo da sociedade dominante, qual seja, a moradia fixa associada
exclusivamente ao trabalho agrícola, desconsiderando que a subsistência de
vários povos baseia-se na caça, na pesca e na coleta, atividades que exigem
extensões mais amplas que o contorno imediato das aldeias. Desse modo, a
perspectiva etnocêntrica e assimilacionista vigorou na tradição do direito até
1988 quando, devido à luta do movimento indígena e de amplos setores da
sociedade civil, em meio ao processo de redemocratização do país, foi
sancionado na nova Constituição o princípio da diversidade cultural como valor
a ser respeitado e promovido, superando-se definitivamente o paradigma da
assimilação e a figura da tutela dos povos indígenas.
Nos anos 1990, a garantia do direito
originário dos povos indígenas às suas terras passou a se alicerçar sobre o
estudo minucioso da territorialidade dos diferentes povos indígenas,
considerando-se não apenas seus usos passados e presentes, mas também a perspectiva
de uso futuro, tudo isso "segundo seus usos, costumes e tradições",
conforme o artigo 231 do texto constitucional.
Por que demarcar?
Por que demarcar terras indígenas?
Ordenamento fundiário
A demarcação de terras indígenas contribui para a política de ordenamento
fundiário do Governo Federal e dos Entes Federados, seja em razão da redução de
conflitos pela terra, seja em razão de que os Estados e Municípios passam a ter
melhores condições de cumprir com suas atribuições constitucionais de
atendimento digno a seus cidadãos, com atenção para às especificidades dos
povos indígenas.
Isso se dá a partir de políticas específicas, incentivos fiscais e repasse de
recursos federais exclusivamente destinados às terras indígenas e às políticas indigenistas
desenvolvidas dentro e fora das terras indígenas (como, por exemplo: ICMS
ecológico, repasses relacionados à gestão territorial e ambiental de terras
indígenas, repasses relacionados à educação escolar indígena, recursos
relacionados às políticas habitacionais voltadas às terras indígenas, recursos
destinados a ações de etnodesenvolvimento, fomento à produção indígena e
assistência técnica agrícola em terras indígenas etc.). Especialmente nos
estados e municípios localizados em faixa de fronteira, a demarcação de terras
indígenas garante uma maior presença e controle estatal nessas áreas
especialmente vulneráveis e, em muitos casos, de remoto acesso.
Garantia da diversidade étnica e cultural
A demarcação das terras indígenas também beneficia, indiretamente, a sociedade
de forma geral, visto que a garantia e a efetivação dos direitos territoriais
dos povos indígenas contribuem para a construção de uma sociedade pluriétnica e
multicultural. Ademais, a proteção ao patrimônio histórico e cultural
brasileiro é dever da União e das Unidades Federadas, conforme disposto no Art.
24, inciso VII da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. As
terras indígenas são áreas fundamentais para a reprodução física e cultural dos
povos indígenas, com a manutenção de seus modos de vida tradicionais, saberes e
expressões culturais únicos, enriquecendo o patrimônio cultural brasileiro.
Conservação ambiental
Beneficiam-se, ademais, a sociedade nacional e mundial com a demarcação das
terras indígenas, visto que tal medida protetiva consolida e contribui para a
proteção do meio ambiente e da biodiversidade, bem como para o controle
climático global, visto que as terras indígenas representam as áreas mais protegidas
ambientalmente (segundo dados PPCDAM - Plano de Prevenção e Controle do
Desmatamento na Amazônia, 2004-2012), localizadas em todos os biomas
brasileiros. Assim, a demarcação de terras indígenas também contribui para que
seja garantida a toda população brasileira e mundial um meio ambiente
ecologicamente equilibrado, nos termos do art. 225 da Constituição da República
Federativa do Brasil de 1988.
FONTE:
LETRA DA CAMPANHA DEMARCAÇÃO JÁ
Já que depois de mais de cinco séculos
E de ene ciclos de etnogenocídio,
O índio vive, em meio a mil flagelos,
Já tendo sido morto e renascido,
Tal como o povo kadiwéu
e o panará –
Demarcação já!
Demarcação já!
Já que diversos povos
vêm sendo atacados,
Sem vir a ver a terra demarcada,
A começar pela primeira no Brasil
Que o branco invadiu já na chegada:
A do tupinambá –
Demarcação já!
Demarcação já!
Já que, tal qual as
obras da Transamazônica,
Quando os milicos os chamavam de silvícolas,
Hoje um projeto de outras obras faraônicas,
Correndo junto da expansão agrícola,
Induz a um indicídio,
vide o povo kaiowá,
Demarcação já!
Demarcação já!
Já que tem bem mais
latifúndio em desmesura
Que terra indígena pelo país afora;
E já que o latifúndio é só monocultura,
Mas a T.I. é polifauna e pluriflora,
Ah!,
Demarcação já!
Demarcação já!
E um tratoriza,
motosserra, transgeniza,
E o outro endeusa e diviniza a natureza:
O índio a ama por sagrada que ela é,
E o ruralista, pela grana que ela dá;
Hum… Bah!
Demarcação já!
Demarcação já!
Já que por retrospecto
só o autóc-
Tone mantém compacta e muito intacta,
E não impacta, e não infecta, e se
Conecta e tem um pacto com a mata
–Sem a qual a água
acabará –,
Demarcação já!
Demarcação já!
Pra que não deixem nem
terras indígenas
Nem unidades de conservação
Abertas como chagas cancerígenas
Pelos efeitos da mineração
E de hidrelétricas no
ventre da Amazônia, em Rondônia, no Pará…
Demarcação já!
Demarcação já!
Já que “tal qual o
negro e o homossexual,
O índio é ´tudo que não presta´”, como quer
Quem quer tomar-lhe tudo que lhe resta,
Seu território, herança do ancestral,
E já que o que ele quer
é o que é dele já,
Demarcação, “tá”?
Demarcação já!
Pro índio ter a
aplicação do Estatuto
Que linde o seu rincão qual um reduto,
E blinde-o contra o branco mau e bruto
Que lhe roubou aquilo que era seu,
Tal como aconteceu, do
pampa ao Amapá,
Demarcação lá!
Demarcação já!
Já que é assim que
certos brancos agem:
Chamando-os de selvagens, se reagem,
E de não índios, se nem fingem reação
À violência e à violação
De seus direitos, de
Humaitá ao Jaraguá;
Demarcação já!
Demarcação já!
Pois índio pode ter
Ipad, freezer,
TV, caminhonete, “voadeira”,
Que nem por isso deixa de ser índio
Nem de querer e ter na sua aldeia
Cuia, canoa, cocar,
arco, maracá.
Demarcação já!
Demarcação já!
Pra que o indígena não
seja um indigente,
Um alcoólatra, um escravo ou exilado,
Ou acampado à beira duma estrada,
Ou confinado e no final um suicida,
Já velho ou jovem ou –
pior – piá.
Demarcação já!
Demarcação já!
Por nós não vermos como
natural
A sua morte sociocultural;
Em outros termos, por nos condoermos –
E termos como belo e absoluto
Seu contributo do tupi
ao tucupi, do guarani ao guaraná.
Demarcação já!
Demarcação já!
Pois guaranis e makuxis
e pataxós
Estão em nós, e somos nós, pois índio é nós;
É quem dentro de nós a gente traz, aliás,
De kaiapós e kaiowás somos xarás,
Xará.
Demarcação já!
Demarcação já!
Pra não perdermos com
quem aprender
A comover-nos ao olhar e ver
As árvores, os pássaros e rios,
A chuva, a rocha, a noite, o sol, a arara
E a flor de maracujá,
Demarcação já!
Demarcação já!
Pelo respeito e pelo
direito
À diferença e à diversidade
De cada etnia, cada minoria,
De cada espécie da comunidade
De seres vivos que na
Terra ainda há,
Demarcação já!
Demarcação já!
Por um mundo melhor ou,
pelo menos,
Algum mundo por vir; por um futuro
Melhor ou, oxalá, algum futuro;
Por eles e por nós, por todo mundo,
Que nessa barca junto
todo mundo “tá”,
Demarcação já!
Demarcação já!
Já que depois que o
enxame de Ibirapueras
E de Maracanãs de mata for pro chão,
Os yanomami morrerão deveras,
Mas seus xamãs seu povo vingarão,
E sobre a humanidade o
céu cairá,
Demarcação já!
Demarcação já!
Já que, por isso, o
plano do krenak encerra
Cantar, dançar, pra suspender o céu;
E indígena sem terra é todos sem a Terra,
É toda a civilização ao léu
Ao deus-dará.
Demarcação já!
Demarcação já!
Sem mais embromação na
mesa do Palácio,
Nem mais embasso na gaveta da Justiça,
Nem mais demora nem delonga no processo,
Nem retrocesso nem pendenga no Congresso,
Nem lengalenga,
nenhenhém nem blablablá!
Demarcação já!
Demarcação já!
Pra que nas terras
finalmente demarcadas,
Ou autodemarcadas pelos índios,
Nem madeireiros, garimpeiros, fazendeiros,
Mandantes nem capangas nem jagunços,
Milícias nem polícias
os afrontem.
Vrá!
Demarcação ontem!
Demarcação já!
E deixa o índio, deixa
o índio, deixa os índios lá.
Cantam:
Chico César
Maria Bethânia
Nando Reis
Zeca Baleiro
Margareth Menezes
Zélia Duncan
Dona Onete
Felipe Cordeiro
Elza Soares
Lenine
Arnaldo Antunes
Céu
Zeca Pagodinho
Gilberto Gil
Ney Matogrosso
Tetê Espíndola
Djuena Tikuna
Marlui Miranda
Letícia Sabatella
Lira
Zé Celso Martinez Correia
Criolo
Baiana System (Russo Passapusso)
Edgard Scandurra
FONTE: